19 janeiro 2011

Prefácio do livro LEOA OU GAZELA - por Betty Vidigal

Flávia Perez tem mesmo leveza de gazela, olhar de gazela. Mas os poemas não são ariscos: esta gazela não é vítima, nem foge do seu perseguidor. E sabe inverter os papéis, caçando em vez de ser caçada.


Cada poema de Flávia mostra que ela ouviu os sons vindos de uma voz íntima e os transcreveu. É isso o que a inspiração produz. Ao contrário dos versos ‘feitos’, fabricados com muito esforço, os de Flávia mostram ter nascido naturalmente, já no ritmo certo, com as tônicas acentuando a batida, surpreendendo.

Nasceram com métrica precisa, sem que ela tivesse precisado ficar dedilhando sílabas, cortando algumas, acrescentando outras.

Poesia é uma arte em que ‘transpiração’ não tem valor nenhum. O bom poema é resultado de inspiração, e a crença de que qualquer pessoa que conheça as regras da versificação pode, caso se dedique o suficiente, produzir versos eternos é um equívoco resultante da forma atual de se ensinar poesia nas escolas.

Flávia descobriu a sonoridade e o poder das palavras e brinca com elas em poemas de que o leitor – e principalmente a leitora – pode se apropriar. Assim devem ser os poetas: entidades que dão voz ao universal produzindo música em palavras.

O uso sábio da rima faz de Flávia uma raridade neste mundo de jovens que se recusam a rimar, engano de quem não foi tomado pela alma da palavra, com seus ecos e suas possibilidades.

Um verdadeiro poeta, assombrado pelo poema, usa os sons com virtuosismo, dando a eles tons velados e múltiplo significado. Assim são os poemas deste livro, que trazem não apenas as chamadas “rimas ricas”, mas também sentidos ricos, que sempre deixam algo por ser desvendado.

Esgarça
A gaze branca que me encobre.

Na meia-taça,
Derrama qualquer bebida,

Mesmo a menos nobre.

Ou: “Mas a paixão perdeu o viço / e depois disso/”, como diz Flávia em “Meu D. Quixote”, ousando na rima nunca fácil, sempre original.

Mesmo as rimas entre verbos são inusitadas. Em vez de rimar verbos da mesma conjugação, Flávia escapa dessa armadilha com segurança, buscando a rima onde parece que ela poderia não estar, como aqui:

Mas meu homem
põe a mão em concha
quando transbordo.

[...]

segue meus passos,
desde a hora em que acordo
até agora,
quando mordo.

A rima entre o presente de transbordar/acordar e o presente de morder vem com naturalidade, sem forçar a atenção do leitor para essas pinceladas sonoras.

Também rimas toantes marcam a poesia de Flávia, revelando o domínio no uso das vogais. De “Destecida”, seleciono alguns versos para formar a frase que evidencia esse recurso poético: “fios do meu cabelo” “repartindo ao meio” “meu mundo e o” “mundo de onde você veio”.

Além da rima, a aliteração sabiamente dosada aparece neste livro, sem recorrer às palavras mais óbvias. É o jogo que se revela no poema “Tormento”, com curare, curativo, curetagem, curandeiro.

Flávia dirige-se a um Homem mítico e universal. A gazela ousa arguir quem pretende caçá-la e termina por também devorar o objeto da paixão.

Pode parecer que o assunto Homem deveria esgotar-se em poucos versos. Mas Flávia, com olhar amoroso, sempre encontra algo mais a dizer sobre a outra metade da espécie humana. E, talvez por isso, precisa ser Leoa ao deixar de ser Gazela.

Betty Vidigal

Um comentário:

  1. [num só fôlego, traçadas as palavras nunca fáceis sobre o trabalho alheio, de alma concisa e corpo de letra, preciso.

    Por si, com orgulho pelo belíssimo prefácio para um belíssimo conjunto, por certo!]

    O melhor do mundo, o melhor que possa conter um

    Abracimenso, Flá



    Leonardo B.

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