22 julho 2010

ENTREVISTA COM MARCELO NOVAES



Fiquei maravlhada com os marcadores que Marcelo usou no rodapé da entrevista:
Marcadores: Arame Farpado, Arqueologia do Sentimento Humano, Arqueologia do Silêncio, Como Leve Pluma Leve Muito Leve Pousa, Erotismo, Flávia Perez

Transcrição:

MN: Flávia, "a graça da arte é o rebelde, o proscrito". Todos os proscritos são parecidos, ou você concebe muitos tipos de rebeldia em arte? Ou existe uma unidade ou "irmandade" entre os proscritos?


FP: Choque, relâmpago, arranhão: a estranheza é passageira. Então preciso saber dos primeiros estranhos, sacrificados na cruz, na forca, na fogueira. Os que vem depois são mais mornos. Quero grafar em maiúsculas o contrário do coro. Queria sempre fazer diferente: canso-me fácil até de mim e do espelho.


MN: Conte-me do halo criado em torno de sua memória, pelos sentimentos declamados/ derramados/ musicados de Roberto Carlos e Charles Aznavour, mesmo antes de entender o enredo das letras. Hoje, mais "crescida", você entende os sentimentos, ou ainda fica só com a música-antes-da-decodificação-do-enredo?

FP: Queimando meu filme hem, rsrsrs. Well, minha mãe ouvia Roberto, e aquilo vibrava em mim, uma pena daquele homem abandonado, e pensava como devia ser triste isso: conviver com alguém e depois perder, ver passar na rua e não fazer mais parte daquela vida, não ter controle sobre sua felicidade. Sofro de empatia crônica. E tenho medo desse sofrer por amor uma vida inteira. É a única coisa que me abate: não saber esperar compassiva o fim da saudade, pensá-la eterna.
Já Aznavour ela traduzia, foi assim que entendi francês sem falar. Sofria previamente com a vida mal vivida e o arrependimento dele. Felizmente, mais tarde escutei Cabaret (life is a cabaret!) e My Way, rsrsrs


MN: Omar Khayam, sufista, falava da embriaguez do vinho ou da embriaguez de Deus, usando o vinho como metáfora? Será Omar Khayam veladamente Dionisíaco? Você é dionisíaca [ou "bacante"], Fávia? Diga-me [pegando o mote de um texto teu para Omar Khayam]: "O Céu precisa ser convertido?" Por quê?

FP: Pô, que importa se era vinho ou metáfora o que ele bebia, se me serviu como uma ânfora a poesia? Mexi um pouco com os carolas: eles é que precisam ser convertidos. Se Deus nos deu capacidade e nos “deixou” fazer vinho, é porque quer que bebamos, certo? Se nos deu os fortes hormônios do “crescei e multiplicai”, porque esse mandamento de não cobiçar a mulher do próximo? Se me “deixa” ser má, deves ser de Seu interesse também...
Divirto-me com esses “mistérios”.
Gosto dos meus poemas blasfemos e profanos (por favor Deus, não me castigue pelos desafios se o Sr existir do modo que pensam os carolas!).
Sufista ou surfista, esotérico ou hedonista, sei lá de meu chapa Omar, mas pra mim, ele cantava a volta ao instinto como principal fonte de crescimento.
Sou dionisíaca? Talvez: a intuição, o instinto(e não o seguir “o que se leu” ou “o que foi dito por aquele filósofo”) é que devem prevalecer na evolução do Ser.

MN: Escrever preenche vazios? Delineia horizontes? Permite que se tateie o que ainda se quer achar? Ou a gente só vomita o que está dentro mesmo? Poesia é mais catarse do que qualquer outra coisa [digo da motivação, sem falar da construção métrica, etc]. Poetar é "domar o vômito, depois de vomitado"?

FP: Escrever essssssvaziaaa, sim, mas é premente apenas quando a idéia vem, passá-la adiante, vomitar, divertir os outros: não fosse isso, deixava na minha cabeça mesmo, nem publicava. Divirto-me dando uma ajeitadinha, arrumando a casa pra mostrar às visitas, quando o troço não sai já feitinho.


MN: Quando se tem vários blogs, se tem várias vozes ou vários temas? Flávia perez tem muitas vozes? Vários temas?

FP: Gosto de arrumação na minha bagunça, separar cada coisa em seu lugar, mesmo com critérios incompreensíveis para os de fora-de-mim. No blog de poesia tem que ter ritmo e-ou rima: nele há uma quase doença compulsiva em deixar o poema, a meu ler, gostoso e fluido. No blog de não poesia nem arrumo a casa para as visitas.

MN: Onde está o "Coração da Vida"? Coincide com a fonte do sopro de tua poesia?

FP: Amor, amor a ponto de tudo esquecer, sacrifício. Toda sorte de amor: a vida foi inventada pra isso. Trabalho, casa, vestidos: os meios pra se permanecer e persistir viraram as coisas pelas quais se vive. Que inversão estranha...O motivo é a leoa alimentando o leão que protege seus filhos, o tigre correndo solitários, mas levando a caça até a caverna (lá dentro há um companheiro doente), os lobos caçando em grupo, uivando por suas companheiras, as aves migratórias e baleias às vezes perdendo seus rumos. E quando tudo isso é perdido de sentido desde o início sem amor, não sobra nada, a não ser fazer algo a mais até a morte não parecer um corte inesperado.
Não sei onde está o Coração da Vida, não conheço, mas talvez por viver sem me esquivar dos perigos, não diga ao final "está muito cedo".
Ou por estar assim perdida, me abandone até quem me esperava ao fim da estrada.
A poesia vem da decepção com a realidade. A realidade não existe se não podemos tocá-la.

MN: Como é Flávia Perez leitora dos próprios poemas? Diga-me quando autora e personagem descolam, na tua percepção íntima, não na dos outros. Poetas, no geral, tendem a virar personagens de si mesmos? caricaturas falantes, ou personas infladas ["overizadas"]? E quando o poeta se perde ou se pulveriza? Qual o maior dos dramas? Já pensou neles?

FP: Leio bem, quando só: são conversas. Alguns entendo apenas quando alguém me traduz, interpreta, investiga. Outros tantos nascem do já pensado. Muitas perguntas e nunca respostas.
Meus personagens estão em mim, no REM e no começo do sono, na inconsciência e na privação dos sentidos, Jekill de saias. Frankenstein, criei e sou um pouco BláBlá, mas Fru-Fru (não a conhece, mas quem conheceu, sabe do que falo) quase tomou conta de mim. Minha escrita, minhas meninas e minhas deusas liberaram um pouco, "soltatram um pouco minha franga", rsrs. De qualquer forma nem o mundo, nem eu aguentaríamos que eu estivesse essas Hyde totalmente. Deixemos os poemas serem a mulher que eu queria ser.
A perdição é virar os textos, vivê-los todo o tempo, falar como eles, inclusive para vendê-los melhor. Se me acontecer, vou parar de escrever: pra que, né? Ninguém lê o livro se o filme é mais fácil de ver.


MN: Outro dia, conversando com Isa Machado, disse que quase não tem Dioniso ao fundo dos meus textos: tem Cassandra ["eu já tinha visto e avisado"], tem Prometeu ["trago-lhes um segredo"], e Dionísio, às vezes, é um hóspede longínquo na cerimônia, ou um convidado de segunda categoria ["hóspede-hospedeiro"]. No meu caso, a coisa é simples: conhecer o sexo e desfrutá-lo, em larga medida inclusive, é coisa de fácil acesso, e Dioniso é um deus fácil de ser acessado. Popular porque fácil. Atravessá-lo até o desmembramento não é tão fácil, mas acessá-lo é corriqueiro. Isa disse que seus poemas têm Ariadne ao fundo. beleza: ela procura pelo Fio [falar é um modo de achar-se/ localizar-se, sair do labririnto]. Há quem pense que não há presença nenhuma ao fundo do que se diz, mas isso é balela, pelo menos para mim. Não acredito nisso. Nem que seja "o barulho do quintal da infância ou as sombras em torno do quarto de dormir", mesmo que não pensemos em "mitos". O "silêncio de onde nasce a poesia" só é acessível para os que silenciaram qualquer [e toda] balbúrdia ou voracidade. Essa é a poesia dos monges, absolutamente inacessível para quem usa a palavra para seduzir, ou "comer fãs". Falar o contrário é "verve", dialética que embevece os menos sérios: impostura, enfim. Conversa pra boi dormir. O silêncio é conquista, nunca ponto-de-partida. Desfiei esta tese aqui por te achar uma pessoa inteligente, além de marcar minha posição quanto aos pseudo-monges da palavra. Marcada minha posição, e exposta minha "tese", eu te pergunto: "quais as presenças-de-fundo dos teus textos"?

FP: Não sei dos símbolos escondidos em mitos, não estudei literatura, filosofia, ou psicologia. Talvez não saiba nomear essas presenças na poesia, diferenciá-las, ao menos conscientemente.
Dionísio, em meus escritos, quase nunca fazia-se acompanhar da consciência (“No coração não existe um templo para Apolo.” Rilke). Poucos sabem ser Dionísio sem um pingo da razão apolínea, sem a culpa cristã, sem ter um germe de cada repressãozinha enfiada em nós através da história da humanidade. Dionísio é popular por ser desejo escondido-adormecido, por ser a antiga ligação com as forças da natureza, mostrar o que temos vergonha de falar (e fazer).
Está enganado quem vê Dionísio apenas como sexo: ele é desmesura em tudo, sem controle, sem outro lado da balança, e um ser assim animalesco não entende do castigo no final, (ué, não fez nada de errado em sua visão pura, e nem deve nada a ninguém!). Não há autocontrole. Dionísio estava lá, inteiro em meus poemas, e tentar acessá-lo de propósito seria racionalização (pra esse tipo de escrita ele nunca estaria em casa). Não é preciso coragem pra ser Dionísio, é preciso instinto sem razão: parar para pesar não é dionisíaco.
Por cantar aos dois filhos de Afrodite, Amor Desarrazoado e o Amor Vingado, vivendo por seu alvo “a cada vão momento”, e completamente cegos, tive por hóspedes Medéia, envenenando princesas e vestidos, e Otelo, desejando tanto o amor, até sufocá-lo e destruí-lo.
Apolo como voz externa que me provocava à guerra: a “razão” de um lado e a suposta irracionalidade de outro deram em escritos revoltados contra apolíneos (me queriam nivelada, escrevendo coisas “profundas” que todos escrevem, o autoconhecimento generalizado está mais na moda do que perder-se!). Quem tenta se conhecer com ajuda de Apolo está indo errado: conhecer-se é chegar primeiramente ao des-limite. Dionísio é moral individual, e Apolo, ao mesmo tempo estraga prazeres e atração fatal. Então me embriagava ainda mais de inconsciência e chamava Apolo pra “briga”.
Dionisíaca ou não, hospedo o animal pré-helênico, evoluindo mesmo sem querer, bárbaro urrando na floresta, tocando tambores bem alto para amedrontar inimigos, e pode ser que, quando o inimigo chegar perto eu o aniquile por sabe-lo fraco, ou copule com ele e forme uma nova civilização, destruindo-me pela aculturação, pela absorção.
Tenho o centauro Quíron, ferido de morte, e ainda assim cavalgando versos pra outras pessoas serem confortadas, e nesses versos há o veneno lento e oculto para transformá-las em outros, igual a mim.
E o Minotauro, de quem as pessoas se envergonham, odiando a hipocrisia dos que renegam sua porção selvagem, sim, meu Minotauro come moças comportadas no primeiro encontro só pra enganar o macho, come homens das cavernas que gostam de suas mulheres castas, meu Minotauro come pseudo-iniciados, ah!, esses ele come com mais prazer: os comedidos que não sabem que para se achar é preciso se perder um pouco. E o Labirinto, ah!, sobretudo deixo falar o Labirinto, cheio de caminhos, onde meus mitos e símbolos se encontram e desencontram, e não conseguem deixar de voltar e serem comidos. Labirinto renova-se, tem fome e continua a desafiá-los, e lá no fundo, essa Natureza começou a ouvir a voz chamando Anaximandro, todo um conflito por ter aceito o “fogo” de Prometeu, ao mesmo tempo procurando o fim do Infinito, onde tudo recomeça, olhando pras estrelas porque sei: aqui dentro não está a resposta de tudo, não me foi mostrado tudo e Anaximandro não quer nada dado assim, de mão beijada. Ele ainda é pressentimento e pra voltar a ele devo me despir da pouca educação que tive.
Estou algumas vezes Teseu, entrando no labirinto sem porra de fio nenhum, querendo talvez matar meu Minotauro (conservo o animal Dionisíaco a salvo?), e Teseu, o meu, não sabe se é por sede de conhecimento e de razão esse olhar pra dentro ou por pura hipocrisia e inveja daquele ser de instinto.

Talvez minhas presenças não passem de uma salada no banquete do Chapeleiro Maluco e ao analisar desse modo(como nunca havia feito), aos poucos modifico-as.
O silêncio é completude, onde todos esses demônios anjos se aquietam. Há dias em que busco o fim do Infinito, há dias em que a caça tenra satisfaz. Nem sei se está aqui ou fora. O fim do Infinito é silencioso.

MN: Quando a palavra não pedir mais para ser dita, você silencia numa boa ou se vê como eterna-caçadora-de-palavras?

FP: Já pedi a palavra pra me deixar em paz, ela me caçava, não me deixava dormir, fazer contas, responder as perguntas das pessoas na rua, em casa, e quando Ela me deixou por uns tempos, sofri de abstinência. Não há cura para esse vício a não ser a exaustão.

MN: Aliás, por falar em caçadora: leoa, ou gazela?

FP: Poeticamente, depende do animal a minha frente. Eu reajo, por instinto, mas reajo. Ser leoa não quer dizer ser caçadora, necessariamente. Alimentei essa confusão por divertimento. Mas deixa o mistério. Basta dizer que LEOA OU GAZELA, TODO DIA É DIA DELA foi o título do meu primeiro livro publicado e temático. Fora da escrita, porém, mordo forte é protegendo meu território e a cria.


MN: Poesia se escreve com P, ou só com T? Explique isso.

FP: “Poesia se escreve com T” é o nome do próximo livro, no prelo. É uma brincadeira de dois sentidos, claro, não gosto de coisa óbvia. Há que se ter tesão pela briga, pelo homem, tesão pela palavra, ritmo, rima, tesão pela destruição, reconstrução e choque. Há que se ter paixão, e paixão tenho pela novidade, pelo gosto forte, pela tragédia, mesmo as pequenas. Coisas mornas, borboletas, arco-íris, não!...nada de pêra, uva ou maçã: pra sair poema tem que ser salada mista e Big-Bang.


MN: Por que tão poucos homens entendem tua poética? Quais as razões para a ambiguidade e mal-entendidos? Seus textos visam esse efeito, ou a maioria de nós [os homens] é que ainda somos xucros? [Ainda somos os mesmos e vivemos...].

FP: Os homens já feridos não veem por detrás das linhas inimigas (para os feridos, nós, as mulheres, somos inimigas), atropelam os símbolos: talvez alguns fiquem mais preocupados com a minha beleza, por instinto caçador ou preconceito. Admito: num primeiro momento usei minha figura para chamar atenção sobre meus escritos. Ficava lisonjeada com o efeito. Agora pago o preço.
Há os que não gostam de uma mulher falando com a liberdade dada somente a eles. Alguém vai dizer “mas há mulheres que fazem poemas eróticos”. Detesto ser chamada de erótica: é simplificação de quem não leu além do escrito. A poesia, quando fala de amor entre homem e mulher, é Natural, selvagem. O poema desfila na frente do macho sem pose, somente o cheiro, sem a consciência do “comportamento inadequado”, sem lembrar que e sem pensar que vou ser destruída depois por causa disso, pelos neander-tais-e-suas-vitorianas. Tento dizer essas coisas às pessoas, mas quem escuta uma Cassandra doidivanas gritando que tudo que eles aprenderam sobre a mulher está errado, porque elas mesmas entram no jogo da mentira sem querer, foram educadas pra isso?
Mas era antes: sinto o selvagem dos meus poemas já vestido pelo homem branco, adão e eva estão nus e sabem disso. Não serei mais a mesma depois de tantos cara-pálidas me oferecerem pau quando peço pão.
Não preciso poetar pra “comer” ninguém: quando faço um poema, atraio, sim, mas como alguém que chama para o quarto com uma lingerie transparente, e quando chega lá exige ao homem que pague a conta da eterna guerra, dá uma intimação judicial, demanda igualdade de sacanagem e de voz, tira sarro da desgraça...
Olha que analogia engraçada: meus poemas são como aquelas imagens que, dizem, são embutidas nas cenas de televisão e duram milésimos de segundos, mas mesmo assim entram na cabeça do “consumidor”. Mulheres já sacaram isso neles, em sua maioria. Alguns homens muito inteligentes, como Anderson Fonseca, José Geraldo Neres, Vlado Lima, Allan Vidigal, pra citar alguns, leram o escondido de pronto. Outros continuam a me tratar como gazelinha-mostrando-a-bunda-rosada e não me respeitam.


MN: O que os saraus te acrescentaram enquanto pessoa-escritora? E as Oficinas Literárias?

FP: Como escritora, nada acrescentaram. Escrever é solitário. Porém quero ser ouvida e pra isso não posso ser apenas lida; se alguém da turma ficar pra contar a história, pronto, estamos salvos do esquecimento total.
Como pessoa me divirto pacas e acabo por arrumar inspiração...
Oficinas, fui em poucas, pra conversar e trocar idéias de igual pra igual com o cara, depois. Na maioria das vezes tenho vontade de falar mais que o palestrante, discordar, e pouco escuto: viajo. Não consigo por encomenda, sou escrava da inspiração que arrepia de repente os pelos, seja a vinda do ouvido-de-dentro ou a que atravessa olhos e pele.

MN: Fale-me dos próximos livros a serem lançados.

FP: Sobre o “Poesia se escreve com T” não sei se já posso falar. “Musa Marginal, o livro da loucura” com poemas e exercícios preferidos sobre o abismo-detrás-dos-olhos e o ver-depois-do-Infinito, está pronto, só precisei ânimo pra ajuntá-los. “O que Mariazinha foi fazer atrás da dobra temporal” é onde o som não se propaga.

MN: Obrigado, Flávia.

2 comentários: